Uma das áreas que mais aprofundei em prática e em conhecimento numa primeira fase do meu percurso profissional foi o IVA.
E desde cedo em ligação com operações de comércio internacional, uma espécie de prelúdio para a que viria a ser, também, uma área de aprofundamento consequente – a Aduaneira.
“Hoje” reconheço o meu percurso de aprendizagem, prática e aquisição de conhecimento como “perfeito”, no sentido de que me permitiu aliar duas das áreas de tributação indireta que, fazendo parte do universo de conhecimento relevante para a estruturação e operacionalização de movimentos internacionais de bens, são o que gosto de apelidar como “amigos inseparáveis”.
E esta semana, opinando sobre operações em planeamento – na fase negocial – envolvendo vendas sucessivas e um único fluxo de transporte de “importação” de bens no território aduaneiro e fiscal da União Europeia, voltei a confrontar-me:
- Com a confirmação das vantagens de deter ambos os conhecimentos: o de IVA e o Aduaneiro,
- Assim como com o ainda poder ser comum quem detém o conhecimento aduaneiro não dominar o IVA (e vice-versa).
A lógica de ambos – Aduaneiro e IVA – no que toca a movimentos internacionais de bens tem por base uma premissa que deve ser sempre o “Norte”: a da congruência.
E deixo aqui um exemplo para melhor ilustrar:
- A (fornecedor estabelecido num país terceiro) vende bens a,
- B (estabelecido num Estado-Membro “1” da União Europeia) que, por sua vez, os vende a,
- C (estabelecido num Estado-Membro “2” da União Europeia: o de entrada dos bens no território aduaneiro e fiscal da UE e de destino final dos mesmos.
Estando em causa entre B e C contratos de fornecimento de um conjunto de bens e serviços, prevendo pagamento – e consequentemente, faturação – em função de marcos previstos em contrato (v.g., 10% com a assinatura do contrato, 30% com o início da produção dos bens, 50% com a expedição e 10% após entrega, instalação e testes finais),
O momento do fluxo físico dos bens, e da inerente declaração aduaneira de “importação” (assuma-se introdução em livre prática e no consumo) no território aduaneiro e fiscal da UE, não coincide com o momento da faturação (comercial) pelo que, para efeitos de tramitação aduaneira, terão de ser utilizadas faturas “pró-forma”,
Correspondendo as mesmas a faturas emitidas e válidas para efeitos aduaneiros que podem, na prática, assumir diversas designações: “faturas de expedição”, “faturas válidas para efeitos aduaneiros”, “faturas de acompanhamento dos bens”,
Mas sempre devendo obedecer a algumas “regras de ouro”, designadamente:
- Respeitarem as regras de emissão que se encontrarem previstas na jurisdição em que as mesmas sejam de emitir (por exemplo, em Portugal, são faturas que têm também de observar a regra de emissão através de software de faturação certificado, o que entendo como autoexplicativo em função da respetiva relevância – direta ou indireta – aduaneira, contabilística e tributária)
- Refletir, integralmente, as condições previstas no que seja o respetivo suporte contratual, designadamente no que se refere a:
– Quem vende,
– Quem compra (“sold-to-party”),
– Destinatário dos bens (“ship-to-party”)
– Incoterm® (incluindo a informação concreta do “local onde o vendedor cumprirá a obrigação de entrega”)
– O preço (integral) pago/a pagar pelos bens.
- Conterem os dados obrigatórios, nos termos da legislação aplicável (no caso da União Europeia, designadamente o previsto no Art.º 226.º da Diretiva 2006/112/CE – “Diretiva do IVA” em alinhamento com o que tiver resultado da respetiva transposição para a legislação nacional do Estado-Membro de estabelecimento do emitente), incluindo (para além da correta identificação dos bens e do seu preço) o enquadramento do IVA (seja mediante a identificação da taxa de IVA aplicável, seja – quando aplicável – o motivo justificativo da isenção/não sujeição a IVA) e, consequentemente,
- Serem coerentes, em termos de “enquadramento em sede do IVA” com o enquadramento que resulta dos termos e condições contratuais e, assim e consequentemente, com o enquadramento refletido nas faturas comerciais (e fiscais) a que respeitem.
Aqui chegados, pensemos então o que acontece quando:
- Para efeitos do IVA, os “especialistas de IVA” indicam que, em função dos “termos e condições contratuais” – designadamente considerando a previsão de que o “poder de dispor dos bens” passa do vendedor B para o adquirente C apenas no momento de “entrega e teste” dos bens a executar nas instalações de C, ou seja, já após a introdução física dos bens no território aduaneiro da EU (e consequente e necessária declaração às autoridades aduaneiras),
A venda dos bens de B para C é enquadrável como uma transmissão interna que ocorre quando os bens se encontram já (em livre prática) no Estado-Membro de estabelecimento de C e, assim, sujeita a IVA nesse Estado-Membro,
Contexto em que, não se encontrando B estabelecido naquele Estado-Membro (onde os bens se encontram quando “colocados à disposição de C”) se aplicará o mecanismo de reverse-charge por via do qual C será o devedor do IVA devido pela compra (interna) realizada a C.
- Para efeitos aduaneiros, coloca-se a questão aos especialistas aduaneiros sobre se C poderá atuar como importador dos bens, considerando ser a entidade estabelecida no Estado-Membro de entrada e destino final dos bens no território aduaneiro e fiscal da UE.
Sem uma reflexão mais profunda e “ligando” o enquadramento em sede do IVA com a “resposta coerente” do ponto de vista aduaneiro, podem os especialistas aduaneiros:
Não antecipar obstáculos a que C,
- Sendo adquirente dos bens ao fornecedor B (“sold-to-party”) e, assim,
- Qualificável também como destinatário/consignatário dos bens (“ship-to-party”),
Se apresente perante as autoridades aduaneiras como “importador” e, nesse papel, assuma a responsabilidade pelas obrigações aduaneiras decorrentes da introdução dos bens no território aduaneiro e fiscal da UE considerando, inclusive, que o Incoterm® acordado entre B e C – DAP (instalações de C) é consistente com este enquadramento.
Referindo “apenas” que para o efeito irão necessitar de uma “fatura aduaneira” que reflita os termos e condições contratuais acordadas entre B e C (em linha com os requisitos teóricos referidos anteriormente).
Mas paremos um pouco para pensar no seguinte:
- C apresenta-se como importador, declarando para introdução em livre prática e no consumo (para efeitos do IVA) os bens, tendo como base uma “fatura aduaneira” que, à partida, não conterá liquidação de IVA;
- A fatura aduaneira deverá ser coerente com as respetivas faturas comerciais/fiscais emitidas por B a C as quais, de facto, não deverão conter liquidação de IVA, MAS – se corretamente emitidas – irão conter uma menção justificativa da qual resulte estar em causa uma transmissão interna (que ocorre no Estado-Membro de estabelecimento de C) pela qual o IVA devido será de (auto) liquidar por C;
- Resultando que C:
– Pagará IVA (ou auto-liquidará se tiver optado pelo “Regime do IVA na DP”) na importação dos bens (ao atuar como importador) tendo como base a “fatura aduaneira”, E TAMBÉM,
– Auto-liquidará IVA na contabilização das faturas comerciais/fiscais emitidas por B a C (que o “nomeiam” como devedor do IVA devido pela “venda interna” ocorrida no Estado-Membro onde C se encontra estabelecido),
– Cenário em que, salvo melhor opinião, estará uma mesma e única transmissão de bens (a que ocorrer entre B e C, no contexto do contrato celebrado entre estas partes) a ser objeto de uma dupla tributação de IVA, “não valendo” concluir que, “sem problema já que o IVA é dedutível e, por isso, nunca será um custo em duplicado”….
- O que suscitaria a necessidade de rever o enquadramento e conclusão do ponto de vista aduaneiro em função do que seja, então, o enquadramento aplicável em sede do IVA e, “das duas uma”:
– Mantendo-se o enquadramento em sede do IVA indicado como o correto pelos especialistas em IVA,
A conclusão, do ponto de vista aduaneiro, deveria ser a de que, nesse contexto, B teria de ser o importador dos bens aquando da introdução física dos bens na UE, na medida em que, no momento da importação, é B quem detém o poder de dispor dos bens, pois apenas o transfere para C em momento posterior ao da introdução em livre prática e no consumo na UE,
O que asseguraria com base na fatura (aduaneira ou comercial – a aplicável em função das condições contratuais entre A e B) a emitir por A (e refletindo o preço pago ou a pagar poe B a A)
OU,
– Resultaria possível um enquadramento alternativo em sede do IVA da transmissão de bens entre B e C no sentido de que,
Considerando o Incoterm® acordado entre B e C – DAP (Instalações de C no Estado-Membro de entrada dos bens no território aduaneiro e fiscal na UE e de destino final dos bens),
Assim como o facto de C ser o “ship-to-party” e, assim, o destinatário/consignatário dos bens no Estado-Membro de entrada dos bens no território UE,
Atuando C (porque habilitado) como importador, adquirirá – para efeitos estritamente aduaneiros e tributários – o “poder de dispor” dos bens e, assim, o IVA devido pela transmissão dos bens entre B e C será liquidado sob o enquadramento da importação dos mesmos na UE e tendo como base a fatura aduaneira emitida por B a C (refletindo os termos e condições contratuais – incluindo preço pago ou a pagar – acordados entre ambos),
Contexto em que o IVA devido pela transmissão de bens a que respeitam as faturas comerciais/fiscais emitidas/a emitir por B a C seria devido e tornar-se-ia exigível no momento determinado pelas disposições aduaneiras com referência aos direitos aduaneiros (sejam estes devidos ou não).
Na prática, o que sucederá numa maioria de casos, será uma ausência de consequências práticas resultantes de um enquadramento aduaneiro não assegurado em congruência com o enquadramento em sede do IVA (em que, como no exemplo acima, uma mesma transmissão de bens acabasse a ser duplamente tributada em sede do IVA),
Desde logo se as partes envolvidas beneficiarem de um direito à dedução integral do IVA e não for, mesmo se por hipótese “académica”, coloca a questão do direito à dedutibilidade do IVA que se revele “duplamente liquidado”.
E talvez por isso – e, para concluir.. – talvez por, também, poder ser ainda uma “regra geral” a de um não domínio simultâneo por quem “opina”, do conhecimento aduaneiro e do conhecimento do IVA, parecendo “caixas estanques de diferentes saberes” quando, em minha opinião, são “duas faces de uma mesma moeda”.