Hoje volto a um tema que se mantém sempre atual na sua pertinência mas, talvez, nem sempre “reconhecido”.

Mas comecemos pelo início: a área aduaneira é, das que já tive oportunidade de trabalhar e aprofundar, a que com maior facilidade se pode tender a assumir, no “dia-a-dia”, como:

  • Não necessária “ligar e manter ligada” a áreas como a contabilística, tributária e comercial
  • Mais estritamente conexa com fluxos de “logística”, mesmo se internacional e, por isso, também, que quem trabalha na área não necessita de deter conhecimentos tributários e contabilísticos, pelo menos num nível mínimo que permita identificar potenciais “sinais vermelhos” e, também, sinergias possíveis de potenciar na ligação a outras áreas.

E creio poder ilustrar de forma relativamente simples o que refiro acima através da utilização de um exemplo que acumula tanto de “aparentemente simples”, como de potencial de problematização e questionamento.

Em áreas de negócio em que não se verifique o que usualmente designo de uma “relação de 1 para 1”, num duplo sentido de:

– A um movimento físico de bens não corresponder um correspondente fluxo de faturação (na aceção comercial e tributária);

– Estarmos perante contratos que prevejam um âmbito de objeto contratual a que o fornecedor se obriga composto pelo fornecimento de bens E serviços, como parte “una” necessária para o cumprimento integral da prestação a que o mesmo se vincula garantir perante o cliente e, assim, à qual possa corresponder um preço global e único a pagar pelo cliente (mesmo se de forma fracionada, por exemplo, porque em função de marcos contratualmente definidos),

Colocam-se desafios extra a quem, tendo a responsabilidade pela vertente aduaneira, tenha de instruir quanto a:

  • O que se revele relevante acautelar e, também, desde logo validar, no momento da contratualização;
  • Como operacionalizar, designadamente no que se refere à documentação que o vendedor/expedidor deverá emitir e que servirá de base à tramitação aduaneira de exportação (no país de expedição e saída do respetivo território aduaneiro) e, em princípio (podendo haver exceções), também à tramitação aduaneira de importação no país de destino dos bens.

 Uma visão compartimentada entre o que é a vertente aduaneira e as vertentes de âmbito mais legal, tributária (IVA) e contabilística poderá levar a que não se identifiquem e acautelem aspetos “maiores” como:

  • Não sendo possível a apresentação da fatura comercial/tributária – a que se encontrando registada contabilisticamente como documento de “venda” ao cliente, constitui evidência do valor transacional (preço pago ou a pagar pelo cliente), assim como do enquadramento em sede do IVA aplicável à operação subjacente,

Haverá que acautelar as ações e procedimentos aduaneiros que se possam revelar necessários para que um documento alternativo ao “contabilístico/tributário” – como seja uma fatura pró-forma/de expedição/válida para efeitos aduaneiros – possa ser aceite, a título definitivo, como base e fundamento, das correspondentes declarações aduaneiras (v.g., para efeitos de identificação dos bens a declarar, determinação do valor aduaneiro e tributário do IVA e, por vezes também, para efeitos de prova de origem preferencial).

E avaliar o que ditam as regras tributárias – e eventualmente também aduaneiras – a respeito dos requisitos de emissão daquele tipo de documentos alternativos (em Portugal, por exemplo, são de emitir também – à semelhança do requisito aplicável às faturas comerciais/tributária – obrigatoriamente através de software de faturação certificado).

  • Mesmo nas jurisdições em que a tais faturas (pró-forma/de expedição/válidas para efeitos aduaneiros) não se aplique o requisito de emissão através de software de faturação certificado, tal não significa que tais documentos não tenham de manter uma coerência e ligação com o que seja(m) a(s) respetiva(s) fatura(s) comercial/tributária e às condições contratuais.

De facto, a “história que contam e que documentam” tem de ser a mesma que o respetivo contrato e faturas comerciais/tributárias refletem,

Seja no que se refere a dados contratuais e na base da transação (vendedor, adquirente, consignatário, entidade e país de expedição, bens a fornecer e respetivo preço, Incoterms®,…),

Seja também, e igualmente relevante, no enquadramento em sede do IVA da operação e contrato a que respeitam.

E daqui resulta que,

Mesmo que sejam faturas com requisitos formais de emissão mais simples do que os aplicáveis às faturas comerciais/tributárias e que, assim, até se possam eventualmente assumir, na esfera do operador económico, como documentos de expedição mais próximos de um propósito e sentido “logístico”, do que legal/comercial/tributário,

Tal não desonera da obrigação de quem as emite dispor de toda a informação necessária que permita garantir essa “coerência na história contada” com o que o contrato e as respetivas faturas comerciais e tributárias apresentam.

Não sendo assim, e a título ilustrativo, pode bem acontecer que:

  • Quem emite faturas que se assumem como “meramente” de expedição/logísticas, enquadre a operação com o motivo de isenção de IVA previsto para as “exportações”, por exemplo, porque assim o define o “template” (por defeito), ou, também, porque assim a experiência possa “ditar” ser o que a alfândega de exportação espera encontrar na fatura de exportação apresentada como base de um despacho de exportação

Mas a fatura comercial/tributária apresente um motivo justificativo de não liquidação de IVA diferente (v.g., operação não sujeita a IVA ou, até, nalguns casos, sujeita a IVA).

  • Ou, também, que no contexto de operações de triangulares e/ou de vendas sucessivas, se “confundam” os intervenientes tal como definidos na esfera contratual e a identificar de forma coerente nos documentos de faturação/expedição a emitir por cada um dos intervenientes (g., quem é o fornecedor e o cliente de quem; qual o preço pago ou a pagar relevante considerar para efeitos do fluxo físico de bens que, sendo único, será o que suscitará a necessidade de declaração dos bens para exportação e importação; quem será o consignatário,…),

Com os intervenientes diretos no fluxo físico de transporte direto entre o fornecedor A (e respetivo país de expedição) com o cliente de destino final dos bens (cliente de um fornecedor B que, esse sim, por sua vez, será o cliente do fornecedor A).

Decerto concordarão que, quando identificadas estas “confusões e incoerências” na prática, entre o que “mostram e contam” os contratos e as respetivas faturas comerciais/tributárias, em confronto com a “história contada” pelas faturas de expedição,

E as mesmas não cheguem a ser compreendidas por quem seja chamado a justificá-las como fruto de lacunas de conhecimento, integração e alinhamento entre a área aduaneira e as demais áreas relevantes (normalmente, as que são parte da negociação e determinação dos termos e condições contratuais: comercial, legal e tributária),

A apresentação de justificações suscetíveis de fazerem sentido perante as autoridades que questionem, torna-se numa espécie de “missão impossível” até que alguém – já “depois do leite derramado” – possa intervir, garantindo essa integração de conhecimentos e, consequentemente, uma versão “holística” quanto ao que deveria “ter sido”.

E, já nessa fase, possa “trazer luz” não só ao que haverá que corrigir porque, de facto, não coerente nem correto. Mas também, e igualmente crítico e importante, quanto às lacunas de conhecimento, assim como de “processos e procedimentos”, que se afigurem relevantes suprir para mitigar riscos de reincidência de erros “maiores” no futuro.

Desde logo acabar com o “mito” de que haja faturas que tenham relevância “apenas” para efeitos aduaneiros.

Uma “fatura” – mesmo se “de expedição” – apresentada no âmbito e para o efeito de ações declarativas de exportação/importação NUNCA tem apenas relevância para o fluxo logístico (e aduaneiro).

Passa a ser tão importante e relevante como os contratos e faturas comerciais/tributárias conexas com a operação na base do fluxo logístico de bens e deverá ser emitida em estrito alinhamento e coerência…

 

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