No início da minha carreira profissional recordo-me de ouvir alguém – com quem muito aprendi e que sempre me inspirou – dizer que, desde que cumpridos os requisitos de modo de emissão e de conteúdo obrigatório nos termos da legislação aplicável, uma “fatura” podia apresentar qualquer outra designação identificativa que não deixaria de ser uma “fatura”, na substância do que pretende “representar e vincular”.

Hoje diria que essa, talvez, tenha sido uma das primeiras lições práticas a respeito do princípio que, até então, apenas me tinha sido apresentado sob uma perspetiva teórica: o da substância sob a forma…

Mas porque me fui recordar disto?

Porque ainda “ando às voltas” com um tema que, tendo nascido de uma questão eminentemente prática e operacional, o meu mapa “mental” não me deixa “passar adiante” por saber que encerra bem mais do que a aparente “ponta visível do iceberg” poderá parecer transparecer.

Dependendo de na base de uma concreta importação ou importação (de bens corpóreos) se encontrar – ou não – uma transação com movimento de divisas (i.e., com um preço pago ou a pagar acordado entre um vendedor e um comprador) o documento “fatura” que deverá ser a base de determinação do valor aduaneiro será distinto.

E mesmo quando estejamos perante uma transação com movimento de divisas, o mesmo se poderá verificar, na prática.

Senão vejamos as seguintes hipóteses:

A. Numa transação de bens com movimento de divisas teremos uma combinação de obrigações comerciais e tributárias que tornam obrigatória a emissão de uma FATURA válida quer para efeitos comerciais (contrato entre as partes, título executivo,….), quer para efeitos tributários (desde logo para efeitos do IVA) – a que habitualmente designo de fatura válida para efeitos comerciais, contabilísticos e fiscais – “fatura comercial”;

B. Mas, mesmo no contexto da hipótese anterior, poderão vendedor e comprador acordar uma faturação e consequentemente pagamento fracionado do preço total que acordam como contraprestação de uma transmissão de um bem, da prestação de um serviço ou de uma prestação composta pela obrigação de fornecimento de bens e de serviços pelo vendedor, de onde resulta que o preço total pago ou a pagar poderá não estar suportado, documentado e contabilizado por meio de uma única “fatura comercial”, mas sim várias;

C. Mas pensemos, agora, numa importação ou exportação de bens que não são objeto de uma transmissão de propriedade entre um vendedor e um comprador mas, “apenas”, objeto de uma cedência temporária do direito de utilização que, mesmo se acorde que a título oneroso (i.e., mediante um preço a pagar pelo cliente ao seu fornecedor), terá por base uma (ou várias, consoante as condições contratuais e de pagamento acordadas entre as partes) fatura cujo montante não terá por equivalência o “valor económico/intrínseco” do bem a que respeita, mas sim o preço acordado entre as partes para um serviço (direito de utilização temporária);

D. Poderemos ainda equacionar a disponibilização de bens entre um vendedor e um comprador que, em função da natureza dos mesmos e da “prática usual do negócio”, contemplam a disponibilização de peças de reposição (ex.º: componentes de desgaste mais rápido de um equipamento e necessárias para a manutenção das condições de utilização e performance do mesmo), acordando as partes um preço total a pagar pelo cliente ao vendedor relativo equipamento e o qual inclui, sem desagregação individualizada do preço, as peças de reposição a fornecer;

E. Por último, podemos ainda equacionar o cenário de disponibilização de bens por um (potencial) fornecedor a um (potencial) cliente, a título gratuito, i.e., sem que o (potencial) cliente assuma a obrigação de pagamento de um preço como contrapartida da disponibilização dos bens pelo fornecedor (ex.º: disponibilização de bens para prospeção comercial).

Muitas mais hipóteses se poderiam equacionar – bastando “das asas à imaginação” ou ir ao “baú da experiência prática” – mas julgo que as cinco hipóteses acima enunciadas serão mais do que suficientes para ilustrar o que me tem andado a dar que pensar.

As declarações aduaneiras (UE) preveem na Casa 44 a obrigação de identificar alguns documentos (e referências) relevantes para efeitos aduaneiros, de entre os quais o documento que assume uma relevância particular já que se declara como o “correto aplicável e idóneo” para servir de base à determinação do valor aduaneiro dos bens.

Até aqui tudo bem, e poderão pensar:

Certo, mas há alguma “ciência” na colocação de um código na Casa 44 que terá por equivalência a identificação do documento/evidência base do valor aduaneiro?

Poderá haver ainda quem se possa questionar: “mas não é, por defeito, o código N380 (o que porventura esteja “na memória” como o mais comumente utilizado)?

Diria que a situação poderá dar um pouco mais que pensar se nos dermos ao trabalho de consultar a tabela de equivalência entre “códigos” e “o que representam” no valor e significado declarativo, quando apostos na Casa 44 da declaração aduaneira (UE).

É que fazendo o simples exercício de pesquisar códigos que tenham associado o significado “fatura”, são vários os que encontramos e dos quais destaco (apenas) os seguintes a título ilustrativo:

N325 – Fatura proforma

N380 – Fatura comercial

N395 – Fatura à consignação

N935 – Fatura com base na qual é declarado o valor aduaneiro das mercadorias

Chegados aqui – e, admito que não pesquisei pelo menos o suficiente para poder ser afirmativa quanto à já eventual inexistência – começaria por partilhar a utilidade de uma tabela de definições complementar a esta lista de códigos para que, e sem grandes margens para interpretações subjetivas,

Se pudesse conhecer qual o “espírito” na base dos códigos e tipo de documento associado em ligação com, por exemplo, a natureza da transação implícita à declaração aduaneira e, assim, garantir-se uma interpretação mais uniforme, esclarecida e eventualmente menos propícia a interpretações subjetivas.

Mas voltando às cinco hipóteses levantadas acima,

E descartando, desde já, com relativa certeza, o código N395 – Fatura à consignação, esclarecendo-se que a hipótese E. acima enunciada não pretendia incluir no seu âmbito situações de disponibilização de bens à consignação (este regime em concreto daria para uma reflexão dedicada em função das particularidades e implicações que se lhe aplicam em termos de IVA e aduaneiros…),

  • Diria ser consensual a conclusão de aplicação do código N380 – Fatura Comercial à hipótese A.: um transporte internacional de bens, uma declaração aduaneira e um implícito preço pago ou a pagar, tendo como base uma fatura comercial, no pressuposto de que essa fatura se encontre já emitida e disponível no momento da “apresentação e declaração dos bens” para efeitos aduaneiros;
  • Mas pensando agora na hipótese B.: um transporte internacional de bens, uma declaração aduaneira e um implícito preço pago ou a pagar de forma fracionada (podendo verificar-se pagamentos antes e depois da tramitação aduaneira de importação/exportação) tendo como base várias faturas comerciais e que poderá incluir, não só os bens a importar/exportar, mas também o fornecimento de serviços que, pela sua natureza, não sejam conexos (na aceção de “serem parte integrante do valor aduaneiro”) com os bens a importar/exportar,

Será também consensual que, nesta hipótese, declarar na Casa 44 o código N380 não será o aplicável, suscitando-se então a questão de qual o código a considerar em alternativa.

Circunscrevendo-nos aos dois códigos que “restam” de entre os destacados:

N325 – Fatura proforma

N935 – Fatura com base na qual é declarado o valor aduaneiro das mercadorias

Poderão ser várias e distintas as interpretações a respeito de qual o código “correto” e, assim, serem apresentadas legítimas e fundadas justificações para a defesa da aplicação de um ou de outro código.

 A minha interpretação – e até que me confronte com uma justificação que, fazendo-me sentido, me permita evoluir na minha linha de pensamento – será a de que:

  • Mesmo havendo subjacente a uma importação/exportação uma transação com movimento de divisas, não sendo possível a apresentação – por motivos óbvios, explicáveis e evidenciáveis – de uma fatura comercial para efeitos da tramitação aduaneira, deverá aquele documento ser “substituído” por uma fatura pró-forma,

 Não deixando de ser uma “fatura” a evidência base que se mantém para declaração dos bens e determinação do respetivo valor aduaneiro,

E mantendo-se como um documento a emitir pelo fornecedor ao seu cliente, refletindo de forma exata os termos contratuais acordados, devendo ser um “espelho” das faturas comerciais (e, se existente, do contrato entre as partes),

Designadamente no que respeita ao preço dos bens a declarar que, inequivocamente, deverá corresponder (e ser evidenciável como tal) à componente do “preço pago/a pagar” que configure a contrapartida a pagar pelo comprador ao vendedor, para que este lhe transmita o direito de propriedade dos bens que constitui a sua obrigação de prestação.

Contexto em que o código a declarar na Casa 44 seria o N325 – Factura proforma.

  • Refletindo agora na hipótese C.: um transporte internacional de bens (cedidos temporariamente, a título oneroso, pelo fornecedor ao cliente), uma declaração aduaneira e um implícito preço pago ou a pagar, mas que não reflete o “valor económico” dos bens, mas apenas a contrapartida monetária definida entre as partes para a cedência temporária do direito de utilização dos bens.

Será também consensual que, nesta hipótese, declarar na Casa 44 o código N380 não será o aplicável – a declaração e utilização da fatura comercial na base da transação teria por efeito imediato uma subavaliação dos bens a declarar…,

 Suscitando-se, então, a questão de qual o código a considerar em alternativa.

Considerando, de novo, aos dois códigos que “restam”, de entre os destacados:

N325 – Factura proforma

N935 – Factura com base na qual é declarado o valor aduaneiro das mercadorias

Também relativamente a esta hipótese C. entendo ser aplicável o mesmo que referi para a hipótese anterior: código N325 – Factura proforma,

Considerando que não existe uma fatura comercial por inexistir uma transmissão do direito de propriedade dos bens,

Mas não deixando de ter de ser determinado – e evidenciado – o valor económico dos bens para efeitos de determinação do valor aduaneiro, e sendo, assim, o mesmo determinado por via de um documento (fatura pró-forma) emitida pelo fornecedor (proprietário do bem cujo direito de utilização cede temporariamente) ao seu cliente.

  • Chegados à hipótese D.: um transporte internacional de bens (específico para as peças de reposição fornecidas pelo vendedor ao comprador), uma declaração aduaneira e sem que aos bens a importar corresponda um concreto e específico preço pago ou a pagar, já que o direito ao fornecimento dos mesmos ao comprador se adquiriu por via da compra, a título oneroso (e mediante um “preço único”) dos bens aos quais as pesas de reposição respeitam.

Diria que, também nesta hipótese, não se suscitem dúvidas de que declarar na Casa 44 o código N380 não será o aplicável. A declaração e utilização da fatura comercial na base da transação teria por efeito imediato, neste caso, uma sobreavaliação dos bens a declarar (preço único que inclui os bens e as respetivas peças de reposição).

Suscitando-se, então, a questão de qual o código a considerar, em alternativa:

N325 – Factura proforma

N935 – Factura com base na qual é declarado o valor aduaneiro das mercadorias

Também relativamente a esta hipótese D. a minha interpretação é a mesma que partilhei para as hipóteses anteriores – N325 – Factura proforma, e sob os mesmos argumentos (com as devidas adaptações) partilhados a respeito da hipótese B.

  • Finalmente chegados à última das hipóteses equacionadas (hipótese E.): um transporte internacional de bens a gerar uma declaração aduaneira e sem que aos bens a importar corresponda um “preço pago ou a pagar” acordado entre as partes, já que os mesmos são disponibilizados a título gratuito por um (potencial) fornecedor a um (potencial) cliente.

Igualmente consensual que, também esta hipótese, declarar na Casa 44 o código N380 não será o aplicável – neste caso simplesmente porque não existe uma fatura comercial.

Qual será então o código a declarar, circunscrevendo-nos, de novo, aos dois códigos que “restam” de entre os destacados:

N325 – Factura proforma

N935 – Factura com base na qual é declarado o valor aduaneiro das mercadorias

Também relativamente a esta hipótese E. a minha interpretação é a mesma que partilhei para as hipóteses anteriores – N325 – Fatura proforma, e sob os mesmos argumentos (com as devidas adaptações) partilhados a respeito da hipótese C.

Não obstante o entendimento que partilho de que, com exceção da hipótese A., todas as demais hipóteses constituirão exemplos de como, na prática,

  • A apresentação de uma “fatura comercial” poderá nem sempre ser possível nem aplicável e,
  • A apresentação de uma “fatura pró-forma” poderá não só fazer sentido como ser de aceitar a título definitivo (conforme até já previsto na Circular n.º 37/2011 Série II da (à data) DGAIEC – “Faturas Comerciais”), mesmo que possa implicar a possível necessidade de prestação de esclarecimentos e evidências adicionais à alfândega de importação/exportação que pretenderá salvaguardar, desde logo, e à importação, a utilização do correto método de determinação do valor aduaneiro e a consequente correta determinação desse valor.

Mesmo que, por vezes, ainda possa verificar-se alguma “dificuldade e estranheza” na aceitação de “faturas pró-forma” sob o argumento de não terem validade para efeitos “contabilísticos e fiscais”.

Mas esta “ausência de validade” para aqueles fins específicos não é mais do que uma natural consequência do enquadramento concreto das implícitas condições contratuais e negociais…Perante a ausência de uma transação comercial e com movimento de divisas, como seria possível a apresentação de uma fatura comercial?

Não obstante, poderá haver quem tenha um entendimento distinto – por exemplo, de ser antes aplicável o código N935 – Factura com base na qual é declarado o valor aduaneiro das mercadorias.

E, nesse caso, admito curiosidade e interesse em conhecer o racional na base da defesa da aplicação daquele código (N935) ou outros alternativos,

Desde logo porque a minha leitura (e sem mais informação que me permita conhecer o “espírito” na base da previsão do Código N935) daquele código é a de que, ao referir “fatura” (e não “fatura pró-forma” ou “fatura à consignação”), pressuporá que estejamos perante uma fatura na aceção de válida para efeitos contabilísticos e fiscais.

Curiosidade extra da minha parte a de se será regra geral os despachantes serem informados pelos seus clientes quanto a aspetos tão essenciais como o da “natureza da transação” implícita à declaração aduaneira que lhes é solicitado que assegurem, e ao tipo de documento que será passível de disponibilização para, designadamente, documentar o valor aduaneiro dos bens.

Ou se, porventura e numa maioria de casos, não se verifique uma espécie de presunção assumida de que, na ausência de informação em sentido contrário (e/ou explícita no tipo de “fatura” que se apresenta entre os documentos base para preparação da declaração aduaneira), o código N380 seja o aplicável…

 

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