Como aprecio (também) poder dedicar tempo a pensar temas técnicos que me levem a ter de acionar a “mente de principiante” – tão rica porque ainda tão pouco condicionada… – e, assim,

Desfrutar daquela sensação tão boa de estar a descobrir algo novo ou que vejo sob uma nova perspetiva.

E assim foi há pouco tempo, com uma partilha com que fui confrontada a respeito de valor aduaneiro – sim, tema sempre tão “na ordem do dia” e em relação ao qual a (minha) inevitável conclusão é a de que “não existem, à partida, verdades absolutas”….

Com esta partilha a minha intenção é a de abrir hipóteses e questionamentos a respeito do quais, e para quem se dê ao trabalho de ler até ao fim, admito ter curiosidade de conhecer as “linhas de pensamento” que poderão suscitar.

Ora então, vamos lá….

O que está em causa?

O fornecedor B – estabelecido num país terceiro (não integrante do território aduaneiro da União Europeia) – acorda com o cliente A o fornecimento de bens.

  • Incoterm® 2020 de fornecimento acordado: DAP (país e morada do cliente);
  • O contrato celebrado prevê um preço total (e específico) a pagar pelo cliente A ao fornecedor B como contraprestação dos bens a fornecer no âmbito do mesmo, prevendo o contrato, no seu âmbito, também o fornecimento de serviços (sem influência no valor dos bens),
  • Sendo parte integrante do referido contrato o detalhe dos vários elementos de custeio considerados pelo fornecedor B para a determinação do preço a pagar por A, incluindo a relativa a transporte internacional que, recorde-se, em função do Incoterm® acordado, será responsabilidade – e custo – do fornecedor B;
  • Acresce o facto de que o contrato, prevendo o fornecimento de um conjunto de bens e serviços pelo fornecedor B, num período prolongado no tempo (não configurando, contudo, um contrato relativo a uma prestação de caráter continuado, mas sim a um conjunto individualizado de bens e de serviços), havia sido já celebrado há mais de um ano,
  • Mas sem que do contrato constasse qualquer cláusula relativa a possibilidade de ajustamento do preço a pagar pelo cliente A com referência aos bens em causa, designadamente para acomodar situações de acréscimo de preços em rubricas essenciais integrantes do custeio dos bens a fornecer, ou seja,
  • O preço a pagar pelo cliente A ao fornecedor B pelos bens em causa manter-se-ia inalterado e corresponderia ao valor final e total da contraprestação a pagar pelo cliente A aquando do cumprimento da obrigação de fornecimento dos bens pelo fornecedor B (no prazo de pagamento previsto contratualmente).

Que questões se podem suscitar?

Assumindo desde logo que é aplicável ao fornecimento de bens em análise o método transacional para determinação do valor aduaneiro, previsto no Art.º 70.º do Código Aduaneiro da União (“CAU”), nos termos do qual e conforme o previsto nos seguintes números:

  • N.º 1: “A base principal do valor aduaneiro das mercadorias é o valor transacional, ou seja, o preço efetivamente pago ou a pagar, pelas mercadorias quando são vendidas para exportação com destino ao território aduaneiro da União, ajustado, se necessário” e,
  • N.º 2: “O preço efetivamente pago ou a pagar é o pagamento total efetuado ou a efetuar pelo comprador ao vendedor (…) pelas mercadorias importadas e compreendo todos os pagamentos efetuados ou a efetuar, como condição de venda das mercadorias importadas”,

O valor aduaneiro dos bens a importar seria determinado em função do valor da contraprestação a pagar pelo cliente A ao fornecedor B, tal como resultante do contrato na base do fornecimento dos mesmos,

Devendo corresponder ao preço acordado que, sendo um preço “DAP”, haveria de ajustar por forma a determinar o valor de despesas de transporte e de seguro até ao local onde os bens sejam introduzidos no território aduaneiro da União (cfr. Art. 71.º, e), i) do CAU.

Não obstante, haverá ou não fundamento para ser suscitada a seguinte questão:

  • Em função da relativa “antiguidade” do contrato e da evolução verificada no sentido de uma subida generalizada dos custos de frete internacional, entre o momento da celebração do contrato e o momento da importação,
  • No momento do efetivo fornecimento e colocação à disposição dos bens pelo fornecedor A, este terá suportado custos de transporte internacional superiores aos que terão estado na base da determinação do preço de venda “DAP (entrega no país e morada do cliente B)” dos bens e, consequentemente,
  • No contexto acima, haverá fundamento para um potencial entendimento de que o valor aduaneiro dos bens deva ser ajustado de forma a refletir o custo real suportado – e a evidenciar – pelo fornecedor B com o transporte internacional contratado para cumprir a sua obrigação de entrega? E, em caso afirmativo,
  • Estaremos perante um “mero” ajustamento entre a desagregação do valor (aduaneiro) “CIF” entre preço “FCA” e a componente relativa a “transporte internacional”,
  • Por via de uma redução do preço “FCA” e um incremento de igual montante na componente de “frete”,
  • Mantendo-se inalterado o valor aduaneiro dos bens, sempre correspondente ao preço pago ou a pagar pelo cliente, apenas ajustado em função do que seja o valor de despesas de transporte já posteriores à introdução dos bens no território aduaneiro da União – transporte “interno” já na União Europeia?

A questão assume relevância considerando que, nos termos do disposto no Art.º 71.º, n.º 1, e), i),

Para determinar o valor aduaneiro por aplicação do artigo 70.º, o preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias é complementado (…) pelas despesas de transporte e seguro das mercadorias importadas” (as relativas até ao local onde as mercadorias são introduzidas no território aduaneiro da União),

Não referindo esta alínea nada quanto a “condição” de aplicação relacionada com “qual das partes – vendedor ou comprador” suporte essas despesas.

O Comentário n.º 12 do Compêndio de Valor Aduaneiro da TAXUD (Comissão Europeia): Tratamento de Custos de Transporte (marítimo e aéreo) – edição de 2024 – versa sobre um caso que será interessante analisar, na medida em que contém as seguintes referências/conclusões (citadas em versão inglesa para evitar “inexatidões” na tradução”):

  • 71 (1) of the Code applies. All transport costs until the point of introduction into the EU have to be included in the customs value. It is not relevant who pays these costs.
  • As regards the cases in question this means that the declared customs value based on the CIF price or the FOB price must correctly reflet the actual transport costs”.

MAS (importante para mim destacar), será de considerar – como sempre e para garantir que não se extrapolam conclusões previstas para situações concretas e determinadas, como igualmente aplicáveis a outras situações que não apresentem a mesma “configuração” – que, na situação fatual na base do citado comentário, estava em causa:

  • Um acordo entre um fornecedor (não estabelecido na UE) e um cliente (importador estabelecido na UE),
  • E uma situação de incumprimento pelo fornecedor do prazo de disponibilização dos bens que visava garantir uma data de chegada à UE definida pelo comprador, com acordo inicial de transporte via marítima,
  • Sendo analisados dois possíveis cenários quanto à situação inicialmente contratualizada entre as partes:

          – Incoterm® CIF de fornecimento, de acordo com o qual a responsabilidade pelo transporte marítimo seria do fornecedor ou,

          – Incoterm® FOB de fornecimento, de acordo com o qual a responsabilidade pelo transporte marítimo seria do cliente

  • Mas sendo comum a ambas as hipóteses o preço a pagar pelo cliente ao fornecedor pelos bens a fornecer: 40.000€.
  • Perante a situação de incumprimento, o fornecedor assumiria a responsabilidade – e implicitamente o custo – de contratar um transporte aéreo, como forma de “recuperar” o atraso no tempo de produção/disponibilização dos bens, mantendo o cliente o preço de 40.000€ a pagar.

Ou seja, no caso sobre que versa o comentário em análise, verificou-se uma alteração dos termos contratuais de fornecimento – Incoterm® e não uma “mera” alteração do custo real de transporte a suportar pelo fornecedor para cumprimento da obrigação de entrega dos bens (nesta última hipótese, sem qualquer alteração do Incoterm® previsto em contrato).

E (entendo) será essa alteração das condições contratuais iniciais de entrega que se assumirá como relevante para fundamentar as conclusões vertidas no comentário em apreciação.

O comentário refere explicitamente na introdução a cada um dos cenários analisados que:

Because B cannot keep the agreed deadline for delivery, the goods will be shipped via air. The delivery terms change automatically into:

  • “CIP arrival airport” no cenário de acordo inicial de Incoterm® CIF port of arrival” como condição de entrega
  • CIP arrival airport” instead of by sea” no cenário de acordo inicial de Incoterm® FOB porto of China”.

Sendo a conclusão, nos dois casos, no sentido de que

  • “In case the goods are originally invoiced CIF or FOB, buyer and seller have to agree before presenting the goods to customs that the invoiced price shall remain the same in case the delivery cannot be met and the goods have to be transported by air instead of sea. In this case the same price is confirmed under the new delivery term CIP. This CIP price is the basis for the determination of the customs value.
  • Because seller B cannot maintain the agreed delivery tie, the goods will be shipped by air (…). The air freight bill shows the air freight costs of 2.000€. But A must still only pay the total agreed price of 40.000€.
  • Under the new delivery terms the full transport costs are again included. As a consequence to the applicable air freight charges of 2.000€ the price for the goods is 38.000€.
  • As regards the intra-Union costs, the total portion of these freight costs included in the invoiced CIP price (for deliveries from China 30% of 2.000€ = 600€, see annex 23-01 ICC IA) can be deducted according to Article 72 UCC. The customs value of the imported goods will therefore add up to 39.400€”.

Voltando à questão inicial sobre se,

  • Num contexto contratual em que nada se tenha alterado, designadamente com referência às condições de entrega e ao preço pago ou a pagar (preço “DAP”),
  • Existirá fundamento para um potencial entendimento de que o valor aduaneiro dos bens deva ser ajustado de forma a refletir o custo real suportado – e a evidenciar – pelo fornecedor B com o transporte internacional contratado para cumprir a sua obrigação de entrega,
  • Na circunstância em que, pelo “simples passar do tempo e evolução das condições de mercado”, o custo a suportar pelo fornecedor B para contratar o serviço de transporte internacional se venha a revelar superior ao custo considerado, no momento da celebração do contrato, para efeitos de determinação do preço “DAP” de fornecimento dos bens?

A minha opinião pessoal é a de que:

  • Desde logo, o caso acima não se enquadra no tipo de situação sobre que versa o Comentário n.º 12 do Comité de Valor Aduaneiro, pelo que as conclusões vertidas no mesmo não se poderão extrapolar como igualmente aplicáveis ao (nosso) caso em análise;
  • No (nosso) caso, temos um preço “DAP” definido como pago ou a pagar pelo cliente A (importador estabelecido na UE) ao fornecedor B (estabelecido num país terceiro – não UE) pelos bens a importar, que independentemente:

          – Do transporte internacional ser suportado pelo fornecedor B,

          – E de serem ou não desagregadas em contrato as várias rubricas de custos a suportar pelo fornecedor,

          – Cuja cobertura – e com margem, assume-se – pretenda garantir por via do preço de venda a acordar com o seu cliente,

          – De entre as quais a rubrica relativa ao transporte internacional,

          – Estamos sempre perante um “preço “DAP” pago ou a pagar pelo cliente A” a título de contraprestação pela compra de bens,

          – E não perante uma compra individualizada – e intencional – pelo cliente A de:

                    – Bens, no que se refira à rubrica de custeio que explicitamente se refira a eventual “valor FCA” dos bens;

                    – E de serviços como os de transporte internacional a prestar pelo fornecedor B que, nessa qualidade,

                       Atuaria como “prestador de serviços logísticos/de transporte internacional”,

Já que, e uma vez mais, nesse caso entendo que estaríamos, antes, perante um acordo de:

  • Compra de bens pelo cliente A ao fornecedor B sob Incoterm® FCA (desconsiderando a hipótese de Incoterm® Ex Works que, como sabemos, não se recomenda, de todo, para compras a fornecedores estabelecidos em países terceiros – não UE…)
  • E, adicionalmente, de serviços de logística/transporte internacional que o cliente A, por algum motivo, decidisse pretender contratar ao mesmo fornecedor dos bens (e não a um terceiro/operador logístico).

No contexto do qual o fornecedor B deveria,

  • Ou emitir duas faturas:
  • Uma relativa à venda dos bens, contendo o preço “FCA” contratualizado,
  • E outra relativa à prestação de serviços de transporte internacional, contendo o preço contratualizado para esse serviço,
  • Ou emitir apenas uma fatura contendo os dois “fornecimentos” (bens + serviços de transporte internacional) e os respetivos preços individualizados,

Sendo de documentar pelo importador o valor aduaneiro “CIF”/”CIP” pela evidência das respetivas faturas – e preços pagos/a pagar – pelos bens (preço “FCA”) + despesas de transporte suportadas.

Mas, a ser assim, arriscaria concluir que poderá não fazer sentido negociar um Incoterm® FCA pela compra de bens a um fornecedor com quem se contrata também a prestação dos serviços de transporte internacional (naturalmente excluindo questões de local pretendido para o cumprimento de obrigação de entrega e de intrínseca alocação de riscos), em alternativa à negociação de Incoterms® “C” ou “D”.

Sendo que, no contexto de um acordo de compra de bens e de definição entre as partes de um preço “DAP” pago ou a pagar pelo cliente (importador) ao seu fornecedor,

Entendo que estaremos sempre perante um preço (“DAP”) que se consubstancia numa contraprestação por uma compra de bens e não pela compra de bens e de todos os serviços que possam estar implícitos ao custeio na base da determinação desse preço “DAP” (mesmo que, naturalmente, incluam uma rubrica de “despesas de transporte até à introdução dos bens no território aduaneiro da UE) e que, assim,

Não havendo alteração do preço “DAP” pago ou a pagar pelo cliente A ao fornecedor B, não existirá fundamento para um potencial entendimento de que o valor aduaneiro dos bens deva ser ajustado de forma a refletir o custo real suportado – e a evidenciar – pelo fornecedor com o transporte internacional contratado para cumprir a sua obrigação de entrega.

Mas, admito, muito curiosa a respeito do que possam ser as vossas eventuais partilhas e comentários…Quid juris?

 

 

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