Hoje volto aos temas técnicos. Inspirada não só pelo “dia-a-dia” – sempre tão rico em temas se pararmos para “observar, pensar e questionar” – mas por se tratar de um tema que tão bem evidencia os inevitáveis pontos de contacto entre “aduaneiro, IVA e incoterms”.
A respeito desses pontos de contacto, e como já partilhei anteriormente, tive já oportunidade de escrever sobre os mesmos no trabalho de final de curso da Pós Graduação em Direito Aduaneiro da União Europeia na EFS – Erasmus University Rotterdam (Incoterms, VAT and Cuxstoms: International Trade of Tangible Goods) e, quem me conhece, sabe que,
- Tendo eu “nascido profissionalmente” com um contacto muito próximo com o IVA e, mais tarde, tido também a oportunidade de aprofundar a área aduaneira,
- E contando com os últimos (já?!) dez anos de experiência profissional direta no “palco das operações” (i.e., onde as decisões quanto a negócios de comércio internacional e a consequente concretização acontecem),
Torna-se mais forte do que eu não analisar os dois prismas (IVA e aduaneiro) em simultâneo, quando se me apresenta alguma questão a respeito da qual identifico implicações e aspetos relevantes de ambos a considerar, normalmente juntando-lhe um “terceiro ingrediente” chave que são os Incoterms®.
Isto mesmo quando, não raras vezes, concluo o quão mais “fácil” (e rápido) seria emitir um parecer ou aprovar uma operação se apenas conhecesse (ainda que “um pouco” – porque quanto mais sabemos mais concluímos o quanto há mais por saber e conhecer…) um dos prismas.
Dou por mim muitas vezes a pensar, quando observo “prescrições rápidas e seguras”, quando eu ainda estou a “ponderar a delimitação das questões essenciais a analisar”: “como consegue alguém ser tão rápido e afirmativo”? E a resposta, normalmente, não se faz tardar tendo esse denominador comum: o apenas ser detido o conhecimento ou de IVA ou aduaneiro.
Mas vamos então ao tema, considerando a seguinte operação:
- Dois sujeitos passivos de IVA estabelecidos num mesmo Estado-Membro da União Europeia (Sujeito Passivo A e Sujeito Passivo B);
- Um acordo de venda de bens entre ambos, sob Incoterm® FCA (com acordo de entrega dos bens num concreto porto marítimo nesse Estado-Membro)
- Sendo que o destino final dos bens é um país terceiro (não pertencente à União Europeia) sendo o Sujeito Passivo B quem tem a obrigação de contratar o transporte internacional (com destino ao país terceiro).
Em que começo a pensar quando me confronto com uma operação como a que descrevo acima e, em concreto, quando me dizem que “é o fornecedor nacional quem vai ter que assegurar, em seu nome, a tramitação aduaneira de exportação”?
Devo admitir que, inevitavelmente, começo pelo IVA, sim, destacando-se logo o facto de estarmos perante:
- Uma transmissão de bens entre dois sujeitos passivos de IVA estabelecidos num mesmo Estado-Membro,
- Uma condição de entrega que tem implícito que,
- Não obstante a obrigação de tramitação aduaneira de exportação que se possa aplicar seja do vendedor (Sujeito Passivo A)
- O cumprimento da obrigação de entrega pelo vendedor ao comprador ocorre com a entrega dos bens no “local de entrega acordado” que, no caso, é no território nacional.
E não deixando de pensar que em Portugal existe um regime de IVA específico para as vendas a exportadores nacionais (o “Decreto-Lei 198/90”) que permite isentar de IVA vendas internas (abrangidas pelo âmbito de incidência objetiva do IVA) desde que cumpridas determinadas condições,
De entre as quais, as que “definem e confirmam” estarmos perante uma venda interna a um efetivo “exportador nacional”, ou seja, que garantem que, de facto, o destino imediato, consequente e certo da venda do fornecedor nacional ao seu cliente nacional é o transporte dos bens para fora do território aduaneiro e fiscal da União Europeia.
Mas, nesse caso, não se confundindo “papéis” porque:
- O exportador (nacional) é o cliente (nacional) do fornecedor nacional (o Sujeito Passivo B da operação acima descrita) e quem se apresenta, com tal, perante a alfândega de exportação, com base na fatura que emite ao seu cliente estabelecido no país terceiro de destino dos bens (“fatura de exportação”);
- O fornecedor nacional (o Sujeito Passivo A), isentando de IVA a venda nacional (desde que cumpridas as condições aplicáveis), mantém-se como “fornecedor nacional” e,
A fatura de venda interna na qual não liquida IVA (por invocar o Decreto-Lei n.º 198/90) é apresentada pelo exportador no âmbito da tramitação aduaneira de exportação, para que seja emitido o Certificado Comprovativo da Exportação (“CCE”) – evidência necessária para legitimar a não liquidação do IVA,
- A declaração aduaneira de exportação propriamente dita – contendo a certificação de saída e identificando o “exportador nacional” (Sujeito Passivo B) como o “exportador” para efeitos aduaneiros – mantém-se como o meio de prova necessário para o exportador justificar a não liquidação de IVA na fatura que emitiu ao seu cliente estabelecido no país terceiro (isenção do IVA prevista para as “exportações”).
Sabendo, contudo, que o Decreto-Lei 198/90 é legislação nacional (PT), sinto então necessidade de questionar:
- Se o Estado-Membro a partir do qual é previsto realizarem-se as operações em análise (já que diferente de Portugal) prevê algum regime similar que permita isentar de IVA as vendas a exportadores nacionais e, em caso afirmativo,
- Quais as condições aplicáveis e, em concreto, o que resulta das mesmas quanto a “qual o papel” (aduaneiro e para efeitos do IVA) que assumem o “fornecedor nacional” e o “exportador nacional” e, implicitamente, como se enquadram para efeitos do IVA cada uma das transações a realizar.
E eis senão quando sou surpreendida quando me dizem que é bem mais simples do que eu poderia estar a pensar porque:
- A venda do Sujeito Passivo A ao Sujeito Passivo B é a “venda de exportação” à qual se aplica a isenção do IVA prevista na legislação do IVA para as exportações e,
- O sujeito passivo A é quem se qualifica como “exportador” no contexto do previsto na legislação aduaneira.
Sendo condição que, na declaração aduaneira de exportação, seja mencionada (e, implicitamente, se encontre disponível para apresentação à alfândega de exportação) a fatura de venda do Sujeito Passivo B ao seu cliente (transação à qual o sujeito passivo A é “alheio”…) e identificado o Sujeito Passivo B (na casa 44).
Como assim?
E lá vou eu revisitar a fonte normativa das legislações nacionais de IVA de cada um dos Estados-Membros da União Europeia – a Diretiva do IVA (Diretiva 2006/112/EC de 28 Novembro 2006) – para relembrar, em concreto, o que prevê como “condições” para a aplicação de isenções de IVA em “exportações”.
O artigo 146.º, n.º 1 que dispõe que os Estados-Membros isentarão de IVA as seguintes operações:
- As entregas de bens expedidos ou transportados para fora da UE pelo próprio vendedor ou por um terceiro por conta deste;
- As entregas de bens expedidos ou transportados pelo adquirente que não se encontre estabelecido no respetivo território, ou por sua conta, para fora da UE.
De uma leitura e interpretação literal do disposto naquele artigo parece resultar que, com referência à situação em análise:
- Não será aplicável a segunda situação descrita, já que o adquirente (o Sujeito Passivo B) se encontra estabelecido no Estado-Membro e, consequentemente,
- Somos remetidos para a primeira situação em que a isenção do IVA na exportação seria aplicável à venda do Sujeito Passivo B considerando que é quem, de acordo com o Incoterm® acordado, tem a responsabilidade de contratar e assegurar o transporte internacional.
Mas, ao que parece, as autoridades competentes do Estado-Membro de realização hipotética das operações descritas admite a aplicabilidade do enquadramento como “venda de exportação isenta” à venda do Sujeito passivo A ao Sujeito Passivo B (ambos sujeitos passivos de IVA estabelecidos no Estado-Membro em causa),
Desde que – entre outras condições – resulte inequivocamente comprovado, e seja passível de prova, que o transporte internacional (de exportação) resulte como “certo” das condições da primeira das “transmissões em cadeia” (primeira transmissão: a que ocorre entre o Sujeito Passivo A e o Sujeito Passivo B; segunda transmissão; a que ocorre entre o Sujeito Passivo B e o seu cliente),
A par do facto de que, de acordo com o Incoterm® acordado entre o Sujeito Passivo A e o Sujeito Passivo B – FCA (porto marítimo no EM de origem de expedição), o Sujeito Passivo A é quem se assume como o responsável pela tramitação aduaneira de exportação e, consequentemente, quem assume o papel de “exportador”.
Nesta fase sinto uma outra necessidade – a de ir rever o que define a legislação aduaneira a respeito do conceito de “exportador” e, uma vez mais, indo diretamente à fonte normativa (Regulamento Delegado (EU) 2015/2446 da Comissão de 28 de julho de 2015) que define “exportador” como (cfr. artigo 1.º, 19), b)):
- Uma pessoa estabelecida no território aduaneiro da União que tem o poder de ordenar e tenha ordenado que os bens sejam transportados para fora desse território aduaneiro ou, quando não aplicável,
- Qualquer pessoa estabelecida no território aduaneiro da União Europeia que seja parte no contrato ao abrigo do qual as mercadorias são retiradas daquele território aduaneiro.
Tendo sido já esclarecido pela Comissão Europeia – TAXUD – mediante notas explicativas relativas ao conceito de “exportador” que, em concreto quanto à condição de que “poder de ordenar e ter ordenado que os bens sejam transportados para fora desse território aduaneiro”, a mesma será de avaliar com recurso a qualquer elemento factual que permita evidenciar esse “poder de decisão e de determinação”, tendo como base os elementos factuais que caracterizam cada concreto acordo de fornecimento de bens.
Sendo verdade que a “nova” definição do conceito de exportador (em vigor desde 2018) veio introduzir uma maior flexibilidade e capacidade de decisão/definição, inclusive das partes envolvidas nos contratos, para a definição do “exportador”,
O que se poderá verificar, também, será então a interpretação (e aceitação) por parte das autoridades aduaneiras (e tributárias) nos Estados-Membros que o próprio facto de uma determinada entidade estabelecida na UE figurar numa declaração aduaneira de exportação como “exportador” confirmará o “poder de ordenar a saída dos bens do território aduaneiro da UE” assim como, e no limite,
(Diria) também o próprio facto de um determinado sujeito passivo de IVA invocar numa fatura de transmissão de bens a isenção de IVA prevista para exportação já que, perante essa factualidade, terá necessariamente que obter uma declaração aduaneira de exportação confirmando a saída efetiva dos bens do território aduaneiro e fiscal da UE na qual figure como exportador, para poder documentar e legitimar a não liquidação de IVA (por via da isenção invocada).
E eis-me aqui, nesta fase, a concluir que:
- Sendo, ambos – o IVA e o direito aduaneiro, de base comunitária (o primeiro definido a nível UE por meio de uma Diretiva que, como tal, pressupõe a transposição para o ordenamento jurídico nacional de cada um dos Estados-Membros para entrar em vigor nesse Estado-Membro; o segundo definido por meio de Regulamentos que, como tal, se aplicam de forma direta em cada um dos Estados-Membros),
Sempre se poderão verificar diferenças na interpretação e aplicação por cada um dos Estados-Membros, contexto em que é sempre necessário – e prudente – verificar-se pelos meios adequados qual o entendimento em concreto das Autoridades Tributárias e Aduaneiras no(s) concreto(s) Estado(s)-Membro(s) onde se pretendam realizar operações tributáveis.
- Essas diferenças de interpretação terão sempre como “baliza” o que as fontes normativas UE definem e “prescrevem” quanto ao que é a “liberdade decisória e de definição” que é concedida a cada Estado-Membro pelo que, sem prejuízo da forte recomendação assegurada no ponto anterior, será sempre bom também nós próprios termos claro, como ponto de partida, o que define a legislação UE (para além do que esteja definido na legislação nacional, quando aplicável).
Só assim poderemos manter capacidade e espírito crítico para um melhor processamento e entendimento quanto ao que nos seja indicado como “entendimento e interpretação aceite pelas autoridades locais” para aquela espécie de “teste de algodão” sobre se a operação ou operações em análise foram corretamente entendidas e, consequentemente, se o entendimento que tenha sido connosco partilhado será mesmo (também e em concreto) aplicável à operação que estejamos a analisar (e, também, se estamos nós próprios a entender corretamente o que nos está a ser transmitido…).
Estou em fase de “teste de algodão” quanto à “prescrição” obtida para a operação em análise e, admito, fascinada pela “viagem de reflexão, leitura e pensamento” proporcionada. Mas implica tempo (para além de “gosto e interesse” por “ir ao fundo” destas matérias).