Já não ouvia esta frase há algum tempo: “mas é uma prática comum em comércio internacional”.
E, ao ouvi-la, dei por mim a pensar – aliás, foi o que de imediato me ocorreu responder – que “o facto de ser prática comum não significa que seja adequada ou a única forma exequível”.
Há vários riscos conexos com negócios que envolvam comércio internacional, sem dúvida, alguns dos quais “os normais” do negócio.
Mas há outros que resultam da falta de conhecimento, capacidade crítica e recursos para perceber que o que um determinado cliente, fornecedor, operador logístico ou qualquer outro interveniente externo nos apresente como um “tem que ser assim”, nem sempre tem mesmo de ser assim e, por vezes, não pode até mesmo ser como nos está a ser solicitado.
Continuo a conseguir identificar mais potenciais “contras do que prós” associados a uma função aduaneira (que, como bem sabemos, acaba por ter um potencial de abrangência maior do que o já, por si só, suficientemente vasto e complexo mundo aduaneiro) enquadrada numa área logística.
Simplesmente porque as áreas de fronteira e, também de ligação, adjacentes a operações de comércio internacional, facilmente extravasam o âmbito estrito de competências, conhecimentos e, também, perfil tipo, que um profissional de logística tenha de deter para o desempenho das suas funções. E não me refiro à sensibilidade que um profissional de logística deva ter para as “implicações e cuidados” que justifiquem a necessidade de envolvimento de “especialistas aduaneiros”, porque essa é já comum encontrar-se e tão útil quanto necessária.
Refiro-me ao facto de um “especialista em temas aduaneiros, tributários e legais conexos com operações de comércio internacional” conseguir ver “mais” de uma mesma situação factual do que um especialista em logística. E bem, pois de um especialista em algo sempre se espera que veja mais além e acrescente mais valor, do que um generalista ou um especialista noutras áreas de conhecimento.
Os riscos intensificam-se quando, por exemplo, a área logística até já tem processos e procedimentos que incluam a preparação de “cadernos de especificações a cumprir pelos fornecedores” que incluam não só requisitos estritamente logísticos,
Mas também requisitos que, pelo seu âmbito, natureza, implicações e especificidade, deveriam ser debatidos e ponderados desde logo na fase de negociação e, no aplicável, serem até previstos no próprio contrato ou instrumento similar,
Preferencialmente com a intervenção e aconselhamento dos especialistas em temas aduaneiros, tributários e legais conexos com operações de comércio internacional”.
Isto porque pode acontecer – diria até ser (ainda) o mais comum – a logística (apenas) entrar no processo já com as condições contratuais “fechadas e assumidas” entre fornecedor e cliente, para uma operacionalização do que foi contratualizado. E, por vezes (para não dizer mais do que as que deveriam), já é tarde.
Vejamos alguns exemplos:
- Uma cláusula no caderno de especificações que prevê a disponibilização pelo fornecedor de um conjunto de documentos necessários para a tramitação aduaneira de importação no destino que incluem,
Para além dos já conhecidos e “normais” (fatura e packing list),
Certificados de origem preferencial (EUR1, REX,…) não só de disponibilização “obrigatória” (e/ou com compromisso tático de disponibilização pela área comercial, assumindo tratar-se de “um documento logístico”), como ainda devendo conter códigos pautais a indicar pelo cliente (os que irá necessitar para conseguir importar no destino…).
- Já com os bens a circular, ser sinalizado pela logística do cliente que há códigos pautais indicados na fatura ou packing list emitidas pelo fornecedor que, consequentemente, constem também do documento de transporte emitido na origem de expedição (BL, AWB,…), que não correspondem aos que virão a ser declarados no destino de importação, mesmo ao nível dos seis primeiros dígitos que, pelo menos em teoria, deveriam coincidir – assumindo, naturalmente, como correta a classificação pautal assegurada – já que correspondentes ao código do Sistema Harmonizado (*).
(*) Sistema internacional de classificação de mercadorias desenvolvido pela Organização Mundial das Alfândegas (OMA) – para mais informação: https://trade.ec.europa.eu/access-to-markets/pt/content/sistema-harmonizado-0
E, a partir daí, todo um conjunto de exigências que podem incluir a solicitação de alteração da fatura e/ou packing list emitida pelo operador económico e/ou do documento de transporte (base do que virá a ser manifestado como “bens a transportar” pela respetiva companhia aérea ou de navegação), para que inclua os códigos pautais a declarar pelo cliente na importação no destino.
Sendo critico garantir que o operador económico exportador é convenientemente assessorado perante este tipo de pedidos que, de outra forma, podem ser tentadoramente “acedíveis” para evitar um litígio comercial, custos invocados pelo cliente como “de paralisação no destino por responsabilidade do vendedor”, ou outras “dores de cabeça”…
Designadamente os que se referem a alteração de faturas e/ou packing lists por poderem ser entendidos como “fáceis, possíveis e no poder de disposição e ação do operador económico, sem ter que envolver um terceiro como o operador logístico responsável pelo transporte”.
Um operador económico estabelecido na UE tem que, antes demais, cumprir com as normativas e obrigações que decorrem da legislação europeia e do seu Estado-Membro em concreto, no que for adicionalmente aplicável.
E obrigações como a de emissão de uma fatura ou documento equivalente trazem consigo outras consequentes como sejam as contabilísticas, tributárias, já para não falar do próprio valor “legal/contratual” de uma fatura que torna o seu conteúdo tão crítico na garantia da respetiva fiabilidade e aderência aos “termos e condições” acordados pelas partes.
Em Portugal essa “ligação natural” – e muitas vezes ainda subestimada – é traduzida de forma muito direta: a da obrigação de que, mesmo faturas “proforma” (as que tenham relevância tributária, aduaneira: como, entendo, sejam todas as que se apresentem como base de uma declaração aduaneira quando, em função da natureza da operação na base da declaração, sejam de “aceitar pela Autoridade Aduaneira a título definitivo”, sem necessária e consequente apresentação de fatura comercial), tenham que ser obrigatoriamente emitidas através de um sistema de faturação certificado.
E há que calibrar bem o que são as obrigações a cumprir na UE e no Estado-Membro onde o operador económico se encontra estabelecido,
Com os pedidos, exigências de clientes e, neste caso mais “trágico em potencial” a respeito das possíveis consequências, com as cláusulas em contratos assinados ou em cadernos de especificações “logísticas” tacitamente (ou pelo menos não conscientemente) aceites, perante oportunidades de negócio tão interessantes que não se podem perder por “pormenores logísticos”, que sempre se haverão de poder acautelar quando chegar a altura de os bens circularem.
E obrigações como as aduaneiras, sempre em ligação com as tributárias, contabilísticas e, até, legais, vão bem mais além do que os requisitos “logísticos” – e já mesmo esses, com as inerentes complexidades, requisitos e implicações legais e contratuais (quem se deu já ao trabalho de ler as “letras pequeninas” de um Bill of Lading ou de um Air Waybill??), que se exponenciam se estivermos perante fluxos de logística internacional.
Chegada a hora de “dar resposta” a uma exigência do cliente, é crítico garantir que a área comercial que esteja a interagir com o cliente ou, até, já a área logística, são convenientemente assessoradas para evitar que, “das duas uma”:
- Ou se adotem soluções que, por serem referidas e reforçadas pelo cliente como “práticas normais e comuns em comércio internacional” e “asseguradas por outros fornecedores na UE , sem qualquer problema”, se assumem como “corretas e possíveis”;
- Ou, no tempo em que porventura a (mais que legítima e prudente) dúvida surja sobre se, de facto, se poderá fazer como o cliente está a indicar como necessário e, até que se acabe, eventualmente, por adotar a solução descrita no ponto anterior ou outra que se tenha identificado como a “correta e possível”, o cliente alegue ter incorrido em custos gerados pela não colaboração imediata e que, consequentemente, terão que ser repercutidos ao fornecedor.
Porque, não, nem tudo o que é referido como “prática normal e generalizada em comércio internacional” é correto e a “única opção disponível”.
E, normalmente, quando quem detém os conhecimentos necessários para fazer uma correta e completa avaliação do que está em causa, a conclusão usual é a de que os temas em debate com o cliente teriam sido evitados, e convenientemente acautelados, se tivessem já sido analisados e debatidos na fase pré contratual e contratual.
Mas para que tal possa acontecer, assim como será mais usual (pelo menos recomendável) envolver especialistas em áreas como a legal, fiscal e financeira na avaliação de novas oportunidades de negócio, designadamente perante a perspetiva de um “novo contrato” em debate, também os especialistas em temas aduaneiros e conexos com operações de comércio internacional devem ser envolvidos para que possam, de forma preventiva e com maior potencial, acrescentar o seu valor.